O PODER DAS GALINHAS NA AGRICULTURA REGENERATIVA
Um dos grandes nomes da agricultura regenerativa no mundo, o guatemalteca Reginaldo Hasslet-Marroquín é o ideólogo de um sistema de produção agrícola regenerativa que tem as galinhas como protagonistas. Nesse modelo, as aves são o principal elemento de regeneração e fertilização do solo, auxiliando no desenvolvimento de diversas culturas agrícolas.
Como podem ser combinadas com várias lavouras e demandam um investimento e manejo acessíveis ao pequeno produtor, as galinhas são uma clara opção para ajudar a alavancar o movimento de agricultura regenerativa global. “Elas têm um papel fundamental na transformação de energia, tornando os sistemas agrícolas mais eficientes e sustentáveis”, disse Reginaldo em conversa conosco, quando passou uma semana no Brasil para conhecer a Fazenda da Toca.
Reginaldo é o arquiteto do modelo de agricultura regenerativa com foco em avicultura que está no coração do do Main Street Project, sediado em Minnesota, nos Estados Unidos, e que trabalha para desenvolver uma agricultura que proporcione melhores condições de vida no campo.
Nessa entrevista, ele diz que esse movimento crescente de regeneração vem atraindo cada vez mais pessoas de volta ao campo, promovendo uma reconexão com a natureza e o equilíbrio entre corpo, mente e espírito, que são chave para a felicidade.
Confira a seguir:
- Qual é o poder que as galinhas têm para alavancar a agricultura regenerativa?
Nosso conceito de regeneração no Main Street Project é muito centrado na presença de animais por conta de sua capacidade de otimizar a transformação de energia. A velocidade em que uma folha, por exemplo, volta ao ambiente em forma de nutrientes para a mesma planta ou outras plantas é muito maior quando passa pelo sistema digestivo dos animais. E as galinhas são muito eficientes nesse processo. Em uma agrofloresta, elas aceleram a transformação de matéria verde, como flores ou folhas, em matéria orgânica e alimento para o solo. Em 48 horas, elas realizam um trabalho que poderia levar muito mais tempo em um processo de compostagem. Com a presença delas e o esterco que distribuem de forma regular no campo, é possível fortalecer a atividade microbiológica, levando o sistema a um crescimento e desenvolvimento contínuo. E as galinhas são uma ótima opção porque prestam esse serviço ao ecossistema e demandam um investimento e manejo acessíveis aos pequenos produtores, além, é claro, de proporcionar uma renda extra com a produção de ovos e carne.
- Com que tipos de cultura é possível combinar avicultura e lavoura?
Naturalmente, não é em qualquer cultura que as galinhas devem ser introduzidas. Se você tem uma plantação de tomate, pimenta ou alface, é claro que as galinhas vão comer e destruir tudo. Não se trata de soltar as aves em qualquer lugar, é preciso ser muito seletivo e estratégico nessa tomada de decisão. Se você tem uma plantação de milho, não deve permitir o acesso das aves até que as plantas estejam altas o suficiente e fora do seu alcance. Em primeiro lugar, é necessário definir bem o espaço que elas terão para ciscar e as espécies a que terão acesso. Culturas perenes, como café, podem funcionar muito bem nessa combinação com as aves. Mas, é claro, não é todo ecossistema que funciona bem com qualquer tipo de animal.
- Como você chegou a esse modelo de agricultura regenerativa com foco em avicultura?
Quando falamos como fazendeiros ou agricultores, temos a tendência de nos apresentar como produtores. E na verdade, nós não produzimos nada. Quem produz é a natureza. Nós simplesmente gerenciamos a energia disponível e transformamos a energia não comestível em energia comestível. Quando entendemos isso, abrimos um novo universo de possibilidades que nos permite superar os limites de uma agricultura baseada em aportes externos que desperdiçam energia, poluem o solo, os lençóis freáticos e o ar. O que fazemos é estruturar uma operação agrícola que captura a energia de forma eficiente e a transforma em alimento nutritivo. Esse é o princípio por trás do que fazemos. E as aves inseridas em um ambiente regenerativo têm um grande poder de otimizar essa transformação de energia, por isso são protagonistas em nosso modelo.
- O Main Street Project tem um caráter de empreendedorismo social. Como esse modelo de agricultura regenerativa muda a vida das pessoas no campo?
Muitas vezes, quando falamos no conceito de ‘triple botton line’ [que considera os benefícios econômicos, ambientais e sociais de um determinado negócio], existe uma compreensão empobrecida. O aspecto ambiental e o aspecto econômico andam juntos porque se você tem um olhar ecológico, naturalmente a sua terra produz mais, você precisa de menos insumos. Isso é claro. Mas quando falamos no aspecto social, há algo mais profundo, que é a felicidade. E isso não tem relação com pagamento, com salário melhor. Felicidade não é algo que se compra e sim o que você sente quando seu corpo, mente e espírito estão em equilíbrio. E esse nosso modelo tem a ver com a possibilidade de proporcionar felicidade às pessoas.
- Por muito tempo, o campo foi associado à pobreza, dificuldades, sacrifício. Por isso houve um êxodo rural tão grande. Mas agora, e especialmente no contexto da agricultura regenerativa, parece haver um movimento de retorno à terra.
Eu vivi em uma floresta e posso dizer que estar em meio à natureza traz um sentimento de profunda felicidade. Muitos agricultores e fazendeiros que praticam agricultura química cometem suicídio, deixam sua terra, se sentem frustrados. E isso decorre de uma prática de desconexão com a natureza. E conexão é cuidado. É a mesma coisa quando se tem um filho. Quando você o embala, coloca-o para dormir, leva na escola, consola-o quando está triste, você cria uma conexão. Com a natureza é a mesma coisa. Não é possível ter conexão quando você a explora. E uma vez que somos parte do mesmo organismo, o nosso espírito sofre quando abusamos da natureza. A agricultura regenerativa promove essa reconexão e por isso atrai tanto as pessoas de volta para o campo.
- Como você vê esse movimento da agricultura regenerativa ganhando cada vez mais corpo?
De fato, é um movimento que vem ganhando força muito rápido. Em 2015 nós fundamos a Regeneration International. Antes disso, esse tema estava praticamente fora da pauta. Não havia conferências, era uma discussão muito restrita. Em poucos anos, ganhou muita relevância, mas vejo duas vertentes: há um movimento verdadeiro de práticas regenerativas e há um também um movimento fake, que busca se apropriar do termo e do conceito, mas tem pouco de realmente regenerativo nas suas práticas. Há um certo modismo correndo em paralelo. Mas, de qualquer forma, vejo com bons olhos que esse debate sobre regeneração está chamando cada vez mais atenção das pessoas, difundindo informação e promovendo conscientização.
- E dentro de 10 anos, como você imagina esse movimento de regeneração?
Acredito que essas duas vertentes irão crescer. Veremos uma prática regenerativa verdadeira e consistente, com um entendimento holístico e resultados reais, e um movimento oportunista que se apropria dessa tendência e não tem muito de regenerativo, traz apenas uma roupagem nova.
- Em linhas gerais, como funciona o trabalho do Main Street Project?
Trabalhamos em parceria com agricultores de baixa renda, além de fazendeiros e trabalhadores da indústria. Estamos construindo uma aliança para respaldar a agricultura regenerativa com foco nas aves como elemento central. Promovemos treinamentos e assistência aos produtores para que possam replicar esse modelo de produção. Falamos muito sobre galinhas porque elas são um elemento fundamental, mas o nosso trabalho não é sobre galinhas. É sobre transformar o sistema alimentar global. Hoje temos um cenário de queda na qualidade nutricional dos alimentos com um consequente risco à saúde. Nas comunidades rurais, os trabalhadores enfrentam longas horas de trabalho e baixos salários. E o solo sofre com erosão contaminação química e lixo tóxico. É essa realidade que propomos mudar no âmbito do Main Street Project.
- Pelo que você viu do Brasil, o que você vê em termos de oportunidade no país em relação ao desenvolvimento da agricultura regenerativa?
O Brasil é um país com uma enorme força agrícola, mas com um modelo de produção convencional predominante. Porém, ao mesmo tempo, vejo uma mudança de visão e iniciativas como a Fazenda da Toca e a Rizoma, capazes de quebrar esse paradigma da agricultura e estabelecer um modelo viável de regeneração. À medida em que essas iniciativas se mostrarem bem-sucedidas, como certamente irão, mais e mais produtores se juntarão a esse movimento. Esse é um momento muito oportuno para rever métodos e práticas agrícolas.